domingo, 3 de abril de 2011

Os Braços Coloridos

Eu matei meu pai. Matei em mais uma das segundas em que ele acordava pra não fazer nada e ficar na frente da televisão sem nem tirar o pijama, esperando que o mundo viesse a descobrir a grande pessoa que ele (pensa) que é ou o grande homem que ele poderia ter sido se tivessem deixado. Quando matei meu pai ele já estava morto, então não achei mais sentido no existir.
Eu matei o perfume amadeirado, a camisa riscada e o cabelo grisalho. Matei o cigarro, o cheiro do álcool e um nariz adunco. Matei a prepotência e a ausência de qualquer demonstração de afeto. Eu matei um buraco, com um mancha e um rombo, entre o chão, e o teto.
O dia em que ele morreu era uma segunda cinzenta de um mês estranho, num ano ruim preso numa década perdida. Perdida. Engraçado falar assim, dizer que uma década é perdida e que um ano é ruim, né? Pra mim é sempre igual, desde que eu nasci. Li um livro que dizia que um ano tinha sido ruim, e achei que dava pra usar aqui. Será que fiz mal?
Ah, lembrei que tinha uma música. Living is easy with eyes closed, dizia a voz de barítono, enquanto a navalha entrava na carne, afogando meu velho no sangue que é meu também, num sangue que tem gosto de xerez, e que já viveu dias mais limpos, aposto!
Fiz exatamente o que a música dizia: tornei a vida mais fácil, fechando os olhos do meu pai enquanto ele se concentrava em cerrar os punhos em torno dos meus braços. Não pensei que um cara tão magrelo pudesse ter tanta força, sinto os braços amortecidos até agora. Amortecidos e arroxeados, com tons mais fortes entre verde e azul que se misturam com o vermelho e roxo do sangue formando uma coloração quase bonita. O mais estranho é que faz tanto tempo e meu braço continua igual: amortecido e colorido; marcado das unhadas que nunca cicatrizaram e vertem sangue com cheiro de xerez toda segunda.
Aliás, alguém sabe que dia é hoje?