Ah, não fossem as palavras... — suspira o avô, as fissuras na face marcando a passagem do tempo como troféus, cada ruga contando uma história — Estaríamos nos grunhidos, na mímica, na gesticulação (os italianos que o digam). Mas o que mais me fascina, João, são as palavras escritas. Escritas e impressas, porque esse computador que tu endeusas não me agrada. É frio e desalmado. E ler nele então? Uma tortura prestes olhos velhos de guerra.
João se acomoda na poltrona, embevecido pela prosa do velho que usa as palavras como ninguém, que tem na voz rouca um convite ao silêncio. O velho acende um cubano, umedece a garganta com mais uns goles de seu ilícito “Tequila Sunrise” e pronto a destilar sabedoria, comenta com o neto que o criador do drinque foi o roqueiro Mick Jagger, que proibido de consumir álcool, criou a batida com visual de laranjada.
Retorna a falar — Imagine, João, se as palavras não existissem, o que seria de nós? Viver em um mundo sem poesia, sem filosofia, sem literatura? Sem as palavras, como Marx mudaria o rumo da história com o seu “Manifesto”? Ou Sartre, imagine-o tentando explicar o existencialismo, não no charmoso idioma francês, mas por meio de gestos? Cruz e Sousa, sem a genial pena, a única válvula de escape? E mais, o teu querido Chico Buarque, sem a genial poesia de boteco, sem as palavras pra cantar na voz tímida?
O neto assente com a cabeça, concordando com as sentenças do avô, que torna a falar, devagar e sempre, como de costume — E digo mais! Sem as palavras nem Deus existiria. Sem as palavras o mundo seria mais feio, mais triste, e paradoxalmente mais feliz.
João consulta o relógio. Sete horas. Deve voltar antes de escurecer. Despede-se do avô com um beijo na testa e sai pelos corredores do sanatório. O avô ainda grita em sua voz rouca de fumante: Mande um abraço a Lênin e Trotsky. Pra Stálin não, não vale o chão que pisa. O Mundo é azul. Mas um dia será vermelho! VERMELHO!
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